Zuleica
Viegas Fernandes da Costa
Entre uma carimbada e outra, seus olhos buscavam ansiosos os confins do corredor, por onde deveria chegar o entregador da floricultura. “Flores para a senhora Zuleica!” E Zuleica, ruborizada, levantava da sua mesa sem computador – a única mesa sem computador naquela repartição – tropeçando em suas pernas desengonçadas, coçando o buço do rosto, recolhendo seu peito magro e surpreso. “Flores para Zuleica!”, repetia o coro de matracas corroídas pela inveja. Dia sim, dia não, o entregador anunciava o mimo daquele admirador que Zuleica tão bem guardava em seus segredos, sempre uma floricultura diferente, sempre as mesmas rosas vermelhas. Zuleica, tão insignificante em seu trabalho de carimbar livros, tão sem graça em seu corpo murcho, sob aquele buço infame, naquela voz inaudível de funcionária servil. Mas havia a rotina daquelas flores a torná-la notável, personalidade invejada. “Que tens tu, Zuleica, que moves assim um homem a tantos agrados?”, perguntava-lhe a supervisora, que já proibira Zuleica a afronta de ostentar flores sobre sua mesa – a única mesa sem computador naquela repartição. E então Zuleica tomava do buquê, dia sim, dia não, no recôndito dos seus braços magros, em abraço relicário, e voltava para seus carimbos. As flores, guardava-as em vaso delicado – herança de uma mãe que não a viu nascer – no chão atrás de si. Ainda assim, escondidas e encolhidas a um canto do chão, emanavam um certo brilho, uma sentença de desafio, uma onipresença que obrigava a todas, as outras, tão bonitas e bem cuidadas, a cogitar mil intimidades de Zuleica, dos segredos cerrados em seus lábios emudecidos, sob sua pele pálida e mal nutrida. Mas Zuleica, tal qual uma Macabéa de desdita já narrada, nasceu para a desventura e, certo dia, manhãzinha, encomendava rosas na florista e ditava “escreve aí, para Zuleica, amor da minha vida”. Doutro canto da salinha, ali, recostada ao biombo, escolhendo buganvílias, a supervisora sequer volveu o rosto. Reconheceu voz e mistério: as rosas de Zuleica, são rosas de uma mulher sozinha.
Ao chegar na repartição, desfiados os “bom-dias”, Zuleica sentou-se a sua mesa – a única mesa sem computador naquela repartição – e, entre uma carimbada e outra, seus olhos buscavam ansiosos os confins do corredor, por onde deveria chegar o entregador da floricultura. “Flores para a senhora Zuleica!” E quando Zuleica, ruborizada, levantou, tropeçando em suas pernas desengonçadas, a supervisora sussurrou-lhe ao ouvido, “estive lá, escolhendo buganvílias”. Maldade insuportável! Zuleica compreendeu tudo, a mentira que construíra, a humilhação e as ironias. E antes que se esboçasse o primeiro riso de escárnio, correu desesperada, com a vida mais vazia que nunca, correu à sacada, projetou-se no vazio e encontrou a pedra fria.
Um comentário:
Bravo!
Belo e trágico. Assim como a vida é.
Ricardo
Postar um comentário