Os esforços de todos os poderes estabelecidos para aumentar os meios de manutenção da ordem nas ruas culmina finalmente na supressão das ruas.
Guy Debord. A Sociedade do Espetáculo. p.172
Blumenau passa por dois movimentos diferentes e complementares que constroem sua urbanização e as experiências humanas no espaço da cidade. De um lado, um profundo investimento na folclorização do cotidiano através de uma estética kitsch,[1] que foi iniciado nos anos 1980, e levou para um contínuo investimento econômico e discursivo na identidade germânica e surgimento de uma cidade parque-temático. Erigida como uma cidade cenográfica, feita para o turista e por isso carregada de simulacros, Blumenau tornou-se um dos exemplos típicos da sociedade do espetáculo[2]. O curioso é que este dito “resgate” da identidade local, nada mais tem feito do que garantido um processo de homogeneização do espaço, já que não dialoga com o cidadão local e sim com o turista acidental. Assim, mesmo que carregada de uma imagem histórica, não faz necessariamente referências do passado local, mas, sobretudo, reproduz modelos muito próximos de um padrão mundial das redes de fast-food, shopping centers e parques temáticos.
O outro movimento refere-se da privatização dos espaços públicos pela especulação imobiliária e a conseqüente gentrificação (enobrecimento das áreas com expulsão da população mais pobre da cidade). Através de políticas públicas e investimentos privados áreas “revitalizadas”, são na verdade, revalorizadas pelo mercado imobiliário e com isso, levam a população empobrecida para distâncias ainda maiores das melhores áreas e dos equipamentos urbanos. Ou seja, normalmente os projetos que pretendem revitalizar estão justamente implicados em retirar as vivências populares dos territórios.
Este processo fica ainda mais evidente nas discussões políticas locais em que a tônica esteve na restrição de liberdades democráticas fundamentais da população: o toque de recolher, a proibição de bebidas nas praças, a perseguição dos malabaristas, a restrição de grupos próximos das escolas, a implantação incessante de câmeras pelas ruas etc. Estas restrições pontuais e sutis estão pautadas em uma divisão da sociedade entre o “homem de bem” e o “homem do mal” e, por isso, ao invés de buscar soluções para os problemas de conflitos urbanos, acabam aumentando a segregação social e simbólica e esvaziando ainda mais as possibilidade de vivências no espaço público. Esta concepção de cidade tende a se caracterizar como uma cenografia em tempo real e permanente, onde a experiência urbana cotidiana acaba resumida a circulação disciplinada por princípios segregadores e despolitizadores. Este processo de empobrecimento da experiência urbana tornou o medo permanente e, por isso, a constante reivindicação da própria população de mais vigilância e mais controle sobre si mesma. Só que esta mesma vigilância acaba produzindo ainda mais medo: o medo da rua, o medo da diferença, medo do contato e, sobretudo, o medo de estar fora do controle.
Não há o que comemorar com os vinte anos de queda do muro de Berlim. Desde então muros reais e simbólicos não cessam de serem erigidos em nossas cidades. Esta mercantilização do espaço nos divide e separa, e com isso, nos retirou o poder de decisão e ação sobre as possibilidades de circulação, socialização e trocas no espaço urbano. Além disso, não cessa de nos retirar a própria possibilidade da existência de uma experiência física urbana enquanto prática cotidiana.
Derrubem os muros!
Eles não servem para nos proteger.
Eles servem para nos separar.
Ricardo Machado, novembro de 2009.
[1] Como já longamente foi discutido pela historiadora Maria Bernadete Ramos Flores na obra Oktoberfest
[2] Fazendo referencia ao conceito de Guy Debord de 1967. Além dele, autores contemporâneos como Paola Berentein Jacques fazem uso da sociedade do espetáculo para discutir as apropriações da experiências urbanas pelo capital.
Um comentário:
pontual e preciso.
gracias, ricardo, pela reflexão/constatação.
Postar um comentário