Mobilidade Urbana: desafios da cidade contemporânea.
Por Ricardo Machado*
O historiador americano Peter Gay já havia afirmado que o ser humano moderno é o ser humano dos movimentos e do movimento. Se a sociedade do século XIX teve sua materialidade possível através do movimento das estradas de ferro, o século XX e XXI(?) se organizaram sob a imagem do automóvel. Na pequena Blumenau, assim como outros lugares do mundo, o século XX também se inaugura com a chegada do primeiro automóvel trazido por Frederico Guilherme Busch em 1903. Com o surgimento do automóvel, surgem as primeiras possibilidades de distinção social ligadas a velocidade de locomoção no espaço. Estes “seres de exceção” que se locomoviam com veículos de autopropulsão desenvolveriam uma das representações centrais em nossa sociedade: a mobilidade privada através do automóvel passa a ser símbolo de ascensão social.
No período após a Segunda Guerra Mundial teremos um movimento de popularização do automóvel e a conseqüente expansão de sua produção, tornando-se principal símbolo da sociedade de consumo que se instaurava. Este processo acarretou uma profunda reorganização urbana que levaram a precarização e destruição das estradas de ferro, a inviabilização de outros meios de transporte como carroças, bicicletas e as caminhadas, o afastamento arquitetônico das residências que ficavam próximas das calçadas, encapamento intenso e constante da superfície terrestre, destruição de espaços públicos e privados para a construção de novas estradas. Assim, as cidades contemporâneas foram tornado-se lugares cinza, ruidosos e mal cheirosos.
Desde então o automóvel tornou-se símbolo de maturidade, status, poder e virilidade. E, sobretudo, sua imagem passou a estar vinculada a idéia de liberdade e velocidade. Para isso, Ivan Illich em seu artigo “Energia e Equidade” apresentou o seguinte raciocínio: “O americano típico dedica mais de 1.500 horas do ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia incluindo domingos) a seu carro. Este cálculo inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho necessárias para pagá-lo e para pagar o combustível, pneus, pedágios, seguro, multa e impostos. Esse americano precisa de 1500 horas para andar ao ano 10.000 km. Seis quilômetros por hora!” Nos países desprovidos de uma indústria de transporte, as pessoas viajam exatamente nessa velocidade a pé, com a vantagem de poder ir aonde quiserem e de não estar restritas às estradas de asfalto. Ou seja, as promessas publicitárias de liberdade são justamente o lugar da escravidão contemporânea.
Esta sociedade que tornou o automóvel seu principal símbolo é a mesma que naturalizou duas guerras ligadas a ele: a conquista imperialista pelo petróleo e a violência cotidiana que erroneamente chamamos de “acidentes de trânsito”. Os mesmos que comemoram o “desenvolvimento” econômico pautado no aumento das vendas de automóveis são aqueles que choram com os mortos no trânsito em Blumenau ou na guerra do Iraque. Na Índia as vacas são animais sagrados e o trânsito precisa mudar seu rumo caso encontre com uma delas em sua frente. Na sociedade do automóvel o ser humano foi dessacralizado para se tornar número de estatísticas funerárias.
Ainda diante da tese desenvolvimentista, é preciso afirmar que o problema dos automóveis em nossa sociedade não se restringe à utilização de energia limpa ou suja. Se trata de uma concepção de mobilidade urbana privada e que não corresponde a escala humana. Não há superfície terrestre disponível para os automóveis, sejam eles movidos a álcool, gasolina ou energia solar.
Diante destes e de outros argumentos, movimentos sociais no mundo todo têm colocado o tema de alternativas para mobilidade urbana como pauta central em suas reivindicações. Afinal, as possibilidades do acesso aos equipamentos públicos que garantam a saúde, lazer e educação estão diretamente ligadas às condições de mobilidade. Diante destas pressões, a prefeitura de Blumenau tem (ainda que timidamente) investido na construção de ciclo-faixas em algumas ruas centrais da cidade. Já nestas pequenas medidas tem-se evidenciado a disputa política pelo espaço público através das diversas manifestações contrárias a sua construção. Mas, estas realizações são ainda muito pequenas diante das necessidades locais. Para uma política sincera de mobilidade urbana é preciso um completo reordenamento das prioridades do planejamento urbano, que implicariam nas seguintes medidas: 1) A restrição de velocidade e de acesso a determinadas ruas para os automóveis individuais; 2) Priorizar o transporte coletivo como realmente público, que implicaria na redução (ou que dirá gratuidade) das tarifas, investimento em uma frota moderna e confortável, ampliação de horários e rotas, bem como, melhorias nas condições de trabalho dos trabalhadores do transporte; 3) Planejamento de ciclovias que estejam afastadas ou desvinculadas das estradas para automóveis, garantindo a segurança e o bem estar dos distintos meios de ciclotransporte; 4) Criação de estacionamentos para bicicletas em diferentes pontos da cidade, em especial, próximo aos terminais de ônibus. Mas todas estas e outras medidas nada significarão se não construirmos um conceito de desenvolvimento que esteja vinculado a garantia da qualidade da vida humana. Para isso, é preciso conceber as cidades como espaço de apropriação pública e coletiva e não de forma privada. Somente assim, construiremos um modelo de mobilidade urbana que garanta a vida e não unicamente o Prozac e a morte.
Por Ricardo Machado*
O historiador americano Peter Gay já havia afirmado que o ser humano moderno é o ser humano dos movimentos e do movimento. Se a sociedade do século XIX teve sua materialidade possível através do movimento das estradas de ferro, o século XX e XXI(?) se organizaram sob a imagem do automóvel. Na pequena Blumenau, assim como outros lugares do mundo, o século XX também se inaugura com a chegada do primeiro automóvel trazido por Frederico Guilherme Busch em 1903. Com o surgimento do automóvel, surgem as primeiras possibilidades de distinção social ligadas a velocidade de locomoção no espaço. Estes “seres de exceção” que se locomoviam com veículos de autopropulsão desenvolveriam uma das representações centrais em nossa sociedade: a mobilidade privada através do automóvel passa a ser símbolo de ascensão social.
No período após a Segunda Guerra Mundial teremos um movimento de popularização do automóvel e a conseqüente expansão de sua produção, tornando-se principal símbolo da sociedade de consumo que se instaurava. Este processo acarretou uma profunda reorganização urbana que levaram a precarização e destruição das estradas de ferro, a inviabilização de outros meios de transporte como carroças, bicicletas e as caminhadas, o afastamento arquitetônico das residências que ficavam próximas das calçadas, encapamento intenso e constante da superfície terrestre, destruição de espaços públicos e privados para a construção de novas estradas. Assim, as cidades contemporâneas foram tornado-se lugares cinza, ruidosos e mal cheirosos.
Desde então o automóvel tornou-se símbolo de maturidade, status, poder e virilidade. E, sobretudo, sua imagem passou a estar vinculada a idéia de liberdade e velocidade. Para isso, Ivan Illich em seu artigo “Energia e Equidade” apresentou o seguinte raciocínio: “O americano típico dedica mais de 1.500 horas do ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia incluindo domingos) a seu carro. Este cálculo inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho necessárias para pagá-lo e para pagar o combustível, pneus, pedágios, seguro, multa e impostos. Esse americano precisa de 1500 horas para andar ao ano 10.000 km. Seis quilômetros por hora!” Nos países desprovidos de uma indústria de transporte, as pessoas viajam exatamente nessa velocidade a pé, com a vantagem de poder ir aonde quiserem e de não estar restritas às estradas de asfalto. Ou seja, as promessas publicitárias de liberdade são justamente o lugar da escravidão contemporânea.
Esta sociedade que tornou o automóvel seu principal símbolo é a mesma que naturalizou duas guerras ligadas a ele: a conquista imperialista pelo petróleo e a violência cotidiana que erroneamente chamamos de “acidentes de trânsito”. Os mesmos que comemoram o “desenvolvimento” econômico pautado no aumento das vendas de automóveis são aqueles que choram com os mortos no trânsito em Blumenau ou na guerra do Iraque. Na Índia as vacas são animais sagrados e o trânsito precisa mudar seu rumo caso encontre com uma delas em sua frente. Na sociedade do automóvel o ser humano foi dessacralizado para se tornar número de estatísticas funerárias.
Ainda diante da tese desenvolvimentista, é preciso afirmar que o problema dos automóveis em nossa sociedade não se restringe à utilização de energia limpa ou suja. Se trata de uma concepção de mobilidade urbana privada e que não corresponde a escala humana. Não há superfície terrestre disponível para os automóveis, sejam eles movidos a álcool, gasolina ou energia solar.
Diante destes e de outros argumentos, movimentos sociais no mundo todo têm colocado o tema de alternativas para mobilidade urbana como pauta central em suas reivindicações. Afinal, as possibilidades do acesso aos equipamentos públicos que garantam a saúde, lazer e educação estão diretamente ligadas às condições de mobilidade. Diante destas pressões, a prefeitura de Blumenau tem (ainda que timidamente) investido na construção de ciclo-faixas em algumas ruas centrais da cidade. Já nestas pequenas medidas tem-se evidenciado a disputa política pelo espaço público através das diversas manifestações contrárias a sua construção. Mas, estas realizações são ainda muito pequenas diante das necessidades locais. Para uma política sincera de mobilidade urbana é preciso um completo reordenamento das prioridades do planejamento urbano, que implicariam nas seguintes medidas: 1) A restrição de velocidade e de acesso a determinadas ruas para os automóveis individuais; 2) Priorizar o transporte coletivo como realmente público, que implicaria na redução (ou que dirá gratuidade) das tarifas, investimento em uma frota moderna e confortável, ampliação de horários e rotas, bem como, melhorias nas condições de trabalho dos trabalhadores do transporte; 3) Planejamento de ciclovias que estejam afastadas ou desvinculadas das estradas para automóveis, garantindo a segurança e o bem estar dos distintos meios de ciclotransporte; 4) Criação de estacionamentos para bicicletas em diferentes pontos da cidade, em especial, próximo aos terminais de ônibus. Mas todas estas e outras medidas nada significarão se não construirmos um conceito de desenvolvimento que esteja vinculado a garantia da qualidade da vida humana. Para isso, é preciso conceber as cidades como espaço de apropriação pública e coletiva e não de forma privada. Somente assim, construiremos um modelo de mobilidade urbana que garanta a vida e não unicamente o Prozac e a morte.
4 comentários:
eu faço parte do grupo das pessoas fracassadas que fazem tudo à pé :) vale lembrar que a caminhada também reduz a poluição sonora.
ótimo texto, ricardo!
Excelente, Ricardo, excelente!!!
Gostei especialmente da parte que fala: "as promessas publicitárias de liberdade são justamente o lugar da escravidão contemporânea."
Vale a pena ler Alex Castro, em sua série de textos OTIMOS sobre as prisões: http://www.sobresites.com/alexcastro/prisoes.htm
Esse texto, sobre os dilemas da classe média, é ótimo também: http://www.interney.net/blogs/lll/2009/03/27/dinheiro3/
Como apontas em teu artigo, Ricardo, há de se transformar duas concepções: a) as políticas públicas; b)a concepção individual. Na sociedade ocidental, e em especial em Blumenau, o automóvel é percebido como uma extensão da casa, um domínio privado, território do indivíduo. Por outro lado, apesar dos tímidos investimentos que Blumenau faz em ciclofaixas, a atual administração pública desestimula o transporte coletivo, que deveria ter tarifas baixas e subsidiadas pelo governo. Entretanto, vemos na televisão nosso prefeito servir como garoto propaganda do shoping do automóvel que estão construindo na Itoupava Central.
Por fim, o problema não é o automóvel, mas o uso que fazemos dele.
Abraço fraterno,
Viegas
Ótimo texto Ricardo!
Vou divulgá-lo com seus créditos.
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