terça-feira, 15 de junho de 2010

História e Memória do Apartheid na África do Sul*


Por Ricardo Machado**

Este ano a África do Sul foi colocada no centro das atenções da mídia internacional devido a realização do campeonato mundial de futebol. De uma maneira geral, as atuais representações sobre o país reproduzem uma continuidade daquilo que Edward Said chamou de orientalismo . Segundo ele, através de um conjunto de descrições sobre este outro não ocidental, buscou-se reforçar elementos do exotismo, sexualidade, primitivismo como uma forma de formar o próprio conceito de oriente em oposição ao de ocidente. Se para Said foi a literatura e as artes visuais que tiveram o papel de construir estas imagens no século XIX, hoje as imagens televisivas e a publicidade, em sua nova roupagem multicultural, apresentam a África do Sul através dos elefantes, selvas e povos nativos. Não significa dizer que a estas realidades não existam, mas de que o investimento discursivo sobre estas imagens construíram unidades e efeitos de verdade que acabam definindo uma única identidade na forma de olhar para esta regiões do mundo.
Recentemente pude conhecer algumas das principais cidades sulafricanas. Isto me permitiu conhecer outros elementos desta África do Sul contemporânea. Atualmente é um país que se inseriu na globalização como uma das principais economias do mundo, mas que por outro lado, ainda luta para construir uma unidade nacional, resolver os novos conflitos étnicos surgidos com o fim do apartheid e, sobretudo, resolver desigualdades sociais e os problemas de saúde pública. Diante destes desafios, o país vivencia um significativo investimento na política de memória que busca dar sentido à África do Sul de hoje. Por isso, neste texto, me aterei mais especificamente ao tema da história recente deste país e os investimentos na memória através da descrição e problematização de alguns dos principais lugares de memória, como museus e monumentos.
No centro da Cidade do Cabo , onde encontramos o núcleo político e administrativo da cidade, com antigas construções portuguesas, holandesas e inglesas, fica o Museu da Escravidão, conhecido como Slave Lodge Museum . O prédio foi construído ainda no século XVII para abrigar escravos da Companhia das Índias e atualmente abriga uma ampla coleção de peças e reproduções sobre a história da escravidão. Neste caso, o que impressiona é a possibilidade de compreender esta história vista do outro lado do Atlântico. Afinal, a história da escravidão estabeleceu a ligação, de pessoas e mercadorias através dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Além disso, no período em que estive na cidade, estava justamente acontecendo no Slave Lodge uma exposição itinerante que rememorava os trinta anos da morte de Bantu Stephen Biko. Através de amplos estandartes com fotografias e textos, a exposição recontava a trajetória pessoal de Biko e sua relação com outros movimentos de resistência ao apartheid. Líder fundamental do movimento Consciência Negra, em 1977 foi torturado até a morte pelo governo, no auge do regime do apartheid. Atualmente sua memória muitas vezes é polarizada com a imagem que se construiu de Mandela. Enquanto Biko incorpora a radicalidade à sua imagem, Mandela é signo da moderação que tornou a África do Sul possível após o fim do regime.
Na Ilha Robben , à onze quilômetros da costa da Cidade do Cabo, situa-se a prisão que abrigou Nelson Mandela durante boa parte dos 27 anos em que esteve preso. Originalmente, local de isolamento de leprosos, doentes mentais, já desde o século XIX serviu como prisão para presos políticos. Evidentemente, sua estrutura de segurança máxima vai se constituindo na medida em que o apartheid vai se consolidando, afinal a resistência a este regime aconteceu de formas diferentes, mas sempre de maneira permanente. A prisão desativada, hoje se configura como um museu e é um dos que possui maior apelo turístico na cidade. Para chegar até a ilha o acesso é feito por uma luxuosa escuna que parte do Waterfront (local que mistura entretenimento e compras, e onde a classe média da cidade e turistas ricos se sentem mais a vontade, afinal, apesar do exotismo de alguns ambientes, o local reproduz muito o estilo globalizado das redes de fast-food). É um local fundamental para entender o sincretismo entre entretenimento e cultura, tão comuns nas políticas de patrimônio em todo o mundo. A visita à prisão na ilha não traz muito daquilo esperado em um museu, pois o que há de importante são os muros, as celas, as cercas e fundamentalmente, o relato do guia que se apresenta como antigo preso político. Ao longo de toda a visita, a presença de seu relato, muitas vezes carregado de emoção, é constante e permanente. Novamente, interessa refletir sobre as políticas de memória como a construção de uma unidade discursiva sobre o passado, e em mundo onde o turismo passa a dar valor à cultura, esta unidade está intimamente implicada com as possibilidades de afirmação política e econômica do tempo presente. Da mesma forma, a visita tem o seu ponto auge, de maneira quase ritualística, na visita da cela em que Mandela ficou aprisionado. Uma cela como todas as outras, mas que neste caso sua originalidade é o sentido dado pelo investimento simbólico da biografia de Mandela.
Na cidade do Cabo, o museu que mais me impressionou foi o Distrit Six Museum. A região do Distrito Seis fica muito próxima do centro da cidade e de lugares socialmente privilegiados perto da conhecida Table Montain. Desde o início do século XX era considerada uma área cosmopolita, na medida em que ali viviam distintos grupos étnicos como xhosas, malaios, indianos, africânderes pobres ou imigrantes de outras regiões do continente. Nos anos de 1960 esta diversidade presente no distrito foi considerada um “problema social” para Partido Nacional , o que levou a remoção de 60.000 pessoas que viviam no local e a completa destruição das habitações (conservando-se somente alguns templos religiosos). Com o fim do apartheid e por iniciativa dos próprios ex-moradores foi criado o Museu do Distrito Seis. Sua coleção é composta das fotografias, objetos e lembranças individuais e das famílias que ali viveram. No chão do museu há um grande mapa, onde se reconstitui as ruas originais do distrito. Até hoje sua gestão é de caráter comunitário, e mais do que um museu, o espaço funciona como um lugar de encontro para o ex-moradores ou aqueles que se identificam com sua história. Este processo de organização do museu e mobilização comunitária levou a reivindicação das terras e casas dos antigos moradores e seus descendentes. Desde 2004 há um processo de regresso destes para o Distrito Seis.
Na cidade de Johanesburgo, o bairro de Soweto se transformou no território fundamental para conhecer a história da luta contra o apartheid. As ruas, igrejas e a antiga casa de Mandela são hoje apropriados como lugares de memória no bairro. Certamente, destes lugares, o mais significativo em Soweto é o Monumento e Museu Hector Pieterson. O museu narra a história das manifestações de estudantes contra a obrigatoriedade do ensino do africâner nas escolas. Em junho de 1976, cerca de dez mil estudantes caminhavam em protesto até um ginásio, onde haveria um comício e foram duramente reprimidos, levando a morte de mais de quinhentas pessoas, dentre eles o jovem de 12 anos, Hector Pieterson. Se durante décadas o mundo fechou os olhos para o sistema de segregação na África do Sul, a imagem de Hector baleado ganhou o mundo e levou ao lento desgaste político internacional do regime. No museu, além dos relatos e imagens do acontecimento, usa-se grandes janelas de vidro com indicações de texto como parte da exposição, ou seja, a própria paisagem de fora do museu foi museificada. Também do lado de fora do museu há um grande monumento com a histórica fotografia de Hector Pieterson, onde lê-se: “Em honra dos jovens que deram suas vidas na luta pela liberdade e pela democracia”.
Para encerrar é preciso ainda tratar do Museu do Apartheid em Johanesburgo. A grandiosidade e dinamismo deste museu é talvez a maior ilustração do investimento na memória pela África do Sul contemporânea. Para acessar a entrada é preciso passar por uma rampa, onde em tamanho real depara-se com imagens de pessoas de costas. Não há como saber se são brancos ou negros. Somente ao ultrapassá-los que é possível identificar. E neste processo constante de identificação e separação que o visitante do museu passa a ser envolvido. Ao chegar na porta do museu todo visitante passa a ser identificado pela cor de sua pele, o que garante acessos distintos ao prédio. Assim, a exposição se apresenta em forma de um grande labirinto, onde você acompanha o movimento de outras pessoas em outros caminhos e que conforme a cor de sua pele você não acessa da mesma forma. Desta maneira o visitante também é marcado pela diferença e passa entender que a segregação era sentida principalmente nas possibilidades de acesso aos espaços. Além disso, o Museu do Apartheid é constituído de um impressionante acervo de imagens, filmes, objetos que são expostos de maneira extremamente interativa, estimulando os visitantes tocarem e serem tocados pela história.
Estes e outros museus e monumentos se tornaram ponto de encontro fundamental para tornar possível a África do Sul após o fim oficial do Apartheid em 1990. Afinal, não se constrói uma unidade nacional somente incorporando novas cores na bandeira . Um dos elementos mais ilustrativos de uma política da memória deste processo é a organização da Comissão Verdade e Reconciliação, encabeçada pelo bispo Desmond Tutu. Esta comissão tomou a busca pela verdade e a legitimação da memória dos desaparecidos como elemento central de sua ação. A história do apartheid só poderia ser conhecida com maiores detalhes com a colaboração daqueles que foram agentes da violência do regime. Por isso, a Comissão Verdade e Reconciliação organizou verdadeiros “julgamentos” públicos onde aqueles que foram acusados de terem cometidos crimes durante o apartheid, somente ganhariam anistia se estivessem dispostos a falar abertamente diante da comunidade e familiares dos desaparecidos sobre as violações que cometeram. Dito de outra maneira: o perdão só seria possível se os agentes do apartheid declarassem publicamente seus crimes. O direito à memória das vítimas pelas suas famílias e comunidades foi ponto chave para estabelecer a justiça: mesmo que esta justiça implicasse o perdão do carrasco.
Mas estes investimentos na memória não estão separados de uma política do tempo presente, afinal, a busca pela verdade e o direito à memória trazem para o presente a necessidade de ações e reparações feitas a uma parcela da população. Por isso, apesar das musas da História e Memória serem distintas, elas estão intimamente implicadas. A memória de um passado não se apresenta ao mundo por si, mas é resultado de um conjunto de investimentos que estão ligados às circunstancias históricas em que se vive. Assim, para a África do Sul contemporânea se tornar possível foi preciso investir na memória. Mas também é preciso lembrar a África do Sul, para que o mundo não se esqueça do significado da palavra apartheid.
(Foto: Monumento Hector Pieterson. Ricardo Machado. 2009)

* Artigo originalmente publicado no Jornal Expressão Universitária. N. 10. Junho 2010. p.6-7.
** Professor do Departamento de História da Furb

Um comentário:

Ligia disse...

Parabéns, muito interessante e relevante para a pesquisa sobre a memória e a história do Apartheid.