segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Entre cadáveres e casas velhas, a literatura

Entre cadáveres e casas velhas, a literatura


Viegas Fernandes da Costa


Quando Maicon Tenfen lançou a primeira edição da novela “Um cadáver na banheira”, em 1997, lembro-me de uma entrevista que concedeu a um programa televisivo, onde afirmou que sua preocupação, enquanto escritor, era apenas escrever uma boa história. Em 2008 tive a oportunidade de entrevistar Tenfen para o “Sarau Eletrônico”, e perguntei a ele se escrever era isso, apenas contar uma boa história. A resposta? “Continuo com a idéia de que um bom conto deve contar uma boa história, um bom romance é aquele que conta uma boa história. Mas não apenas! Por trás daquilo você vai encontrar uma cosmogonia capaz de lhe fazer refletir sobre muitas coisas, sobre a sua própria vida, sobre a sociedade e o mundo em que você vive.” Ou seja, Tenfen continua acreditando na força da narrativa, em seu poder de enredar o leitor e de aprisioná-lo nas possibilidades da trama, entretanto, reconhece que a literatura não se limita à fruição.
Ainda que não o reconhecesse publicamente, quando lançou “Um cadáver na banheira”, Maicon Tenfen já começava a esboçar nesta novela um projeto literário que tem por objeto questionar e refletir a respeito do fazer literário e do mercado editorial. Projeto que o autor de certa forma explicita com a publicação da terceira edição de “Um Cadáver...” (2007) e, mais recentemente, com seu livro de contos “Casa Velha Night Club” (2009). Em ambos os títulos, a proposta metaliterária é clara, e a relação direta entre os dois livros é estabelecida abertamente pelo próprio autor, não só através das menções feitas pelo personagem Maicon Tenfen em “Canil para cachorro louco”, conto que fecha “Casa Velha...”, bem como nas referências que encontramos fora do espaço da fábula propriamente dita. Quando observamos, por exemplo, os créditos de revisão ortográfica e gramatical da terceira edição de “Um cadáver...”, vamos nos deparar com o nome de Genésio Campanelli, informação nova, já que nas edições anteriores dessa novela (1997 e 1999) não se fazia alusão ao revisor. Genésio Campanelli aparece novamente nos agradecimentos de “Casa Velha...” e, pasmem, como protagonista do já referido conto “Canil para cachorro louco” na pele de um pacífico e metódico professor universitário que se vê envolvido numa trama de sexo, chantagem e homicídio. Ultrapassando os limites tradicionais da fábula, Maicon Tenfen faz uso dos espaços extraliterários do livro para conferir maior verossimilhança a sua trama, brincando com as fronteiras da ficção e da realidade e enveredando por aquilo que Tzvetan Todorov chama de “autoficção”. É o caso, por exemplo, quando o professor Genésio Campanelli reconhece, na geografia do conto, o escritor Maicon Tenfen: “Era um colega seu, um amigo de muitos anos, um ex-aluno que recentemente se tornara professor da Universidade. Era Maicon Tenfen, o escritor.”


O excerto acima lembra o primeiro capítulo de “As palavras e as coisas”, de Michel Foucault, onde o filósofo analisa a cena apresentada no quadro “Las Meninas”, pintado em 1656 por Diego Velázquez. Foucault nos aponta a presença de Velázquez no interior da cena, pintando um quadro em que, muito provavelmente, retrata aquilo que se descortina aos seus olhos e que podemos supor sermos nós mesmos, a plateia. No meta-artístico “Las Meninas”, Velázquez aponta a existência de um autor e de um consumidor; na obra de Tenfen, e em especial nesses dois títulos que discutimos aqui, o autor também afirma sua existência, apesar de que no conto “Nick Fourier”, que abre o “Casa Velha...”, este autor seja morto por sua própria obra. Eis aqui uma escatologia. “Nick Fourier” dialoga diretamente com “Um cadáver...” naquilo que diz respeito ao tema e à posição do autor Maicon Tenfen diante do mercado editorial, ou seja, o recorrente conflito entre arte e artesanato, criação e reprodução. Em “Canil para cachorro louco” o autor estabelece sua catarse, assume sua existência, liberta-se da prostituição literária e define-se enquanto artista que deseja contar uma boa história, mas não apenas isso.
“Um cadáver na banheira” conta a história de Jorge Gustavo de Andrade, personagem que foge de uma pequena cidade do Alto Vale catarinense com sua namorada e se instala em Blumenau, onde espera realizar o sonho de publicar seu romance de estreia, “O retorno do Alquimista”, e assim se transformar em escritor de sucesso. Entretanto, Jorge Gustavo encontra os muros praticamente intransponíveis do mercado editorial, e se vê forçado a recorrer aos préstimos de Suzana Fischer, proprietária de uma editora que publica os livros de autores que desejam pagar pelo serviço. Em um dos trechos da novela, Jorge Gustavo diz para sua editora Suzana Fischer: “É difícil definir um editor que tenha a cara-de-pau de publicar um livro que não foi analisado, mesmo quando é pago por quem o escreveu. Você é tão sem-vergonha que não se preocupa se publica arte ou merda – desde que um otário como eu assine um cheque – pois seu lucro não vem do livro em si. Vem do bolso do autor.” Vale lembrar que a primeira edição de “Um cadáver...” – bem como a edição do primeiro livro de Maicon Tenfen, “Entre a brisa e a madrugada” (1996) – foi publicada através de uma editora que cobrava de seus autores os serviços de editoração e publicação e não possuía logística de distribuição. Assim, a crítica que a novela destila destina-se, no âmbito geral, ao mercado editorial, excludente e monopolista; e, no âmbito particular, muito provavelmente a uma editora em especial: à própria que publicou a primeira edição de “Um cadáver na banheira”.
Os oito contos que compõem “Casa Velha Night Club” discutem, de alguma forma, o fazer literário e a presença do livro em nossa sociedade. Entretanto dois contos estabelecem essa discussão de forma mais incisiva, e são justamente o primeiro e o último do volume, como já apontamos anteriormente. Em “Nick Fourier” conhecemos a história de um escritor fracassado em suas pretensões de produzir “alta” literatura, e que ganha a vida escrevendo livros policiais de bolso e descartáveis. Quando decide se libertar do personagem que criara, matando-o (como tantos autores realmente tentaram fazer, não obtendo sucesso, como no caso de Conan Doyle, que matou Sherlock Holmes para ter que “ressuscitá-lo” depois), é por este morto. A mensagem de Tenfen é clara: o escritor que se entrega à indústria da cultura de massa pode até encontrar sua sobrevivência financeira, mas terá suas possibilidades artísticas assassinadas. De certa forma Maicon Tenfen retoma a questão em “Canil para cachorro louco”. Há um trecho onde o personagem Tenfen narra a Genésio Campanelli uma história que está escrevendo e diz: “A menina do meu conto também é devorada. Depois que crescem, as criaturas não costumam poupar seus criadores”. Não é, porém, de canibalismos que trata “Canil para cachorro louco”, mas de autofagia. Ao se lançar nas tramas da enorme teia narrativa, dissolvendo ficção e realidade no grande mar da linguagem, Maicon Tenfen, o personagem e o escritor, reafirma-se enquanto artista capaz de se inventar outro, novo, estabelecendo um texto muito bem construído, contando uma boa história e apontando para algo a mais.
E é justamente este “algo a mais” de “Casa Velha Night Club” que nos permite crer que Maicon Tenfen ainda se autofagizará muito, “enchendo seus textos de mensagens e ligações ocultas, jogando com o leitor e dizendo coisas que jamais teria coragem de dizer diretamente”, como certa vez me confidenciou Genésio Campanelli.

* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor. Autor de “Sob a luz do farol” (2005) e “De espantalhos e pedras também se faz um poema” (2008). Edita o Sarau Eletrônico, site de literatura da Biblioteca da FURB. O presente texto foi originalmente publicado no Caderno de Cultura do Diário Catarinense, Florianópolis, 09/01/2010, p. 3.

Nenhum comentário: