QUATRO
Viegas Fernandes da Costa
I - CHAPLIN
Quando criança, lembro-me, houve aquele dia de chuva que me concedeu o filme de Chaplin. Na televisão, a magia do vagabundo que adota aquele garoto. Sim, Chaplin é mágico, foi mágico para mim, e que mal há nesta magia? Quero reaprender a chorar. Por favor, quero reaprender a chorar, e me encantar com o vento no rosto e libertar meu peito no sol.
II - REMINISCÊNCIA
Meu avô tirando os dentes postiços e querendo me morder com suas gengivas nuas. Minha avó me obrigando a vestir aquele pulôver verde naquele dia de calor. O calor não estava no dia, mas no carinho da proteção; a nudez não estava nas gengivas, mas na inocência da infância.
III - O VIOLÃO
O violão se sustenta virgem e decorativo na parede nua, estrategicamente enquadrada pela câmera. Pende dos ganchos que o prendem à pedra, a possibilidade abortada do som. Em primeiro plano, a cantora, que fala demais. Por que tanta palavra e um violão mudo?
Não escutei as perguntas da repórter, tampouco as respostas da cantora que desconheço. Toda a minha atenção voltada àquele violão que ainda não nasceu.
IV - MANHÃ DE ELIS
Hoje o dia amanheceu Elis. As águas de março anunciando do verão o ocaso. E da janela em movimento, os pastos, as luzes sonolentas das casas que acordam. Na poltrona, encolho-me para escutar o apelo dos olhos tristes que sorriem em cumprimento ao meu lado. A quem pertencem estes olhos tristes? E a quem pertencem todos estes suspiros que enchem de vapores esta manhã tão úmida? Ah, viver esta vida anônima, acender todas as manhãs a lâmpada da cozinha e preparar o café! Este café que aquece aquela casinha acordada no final daquela rua, que passa tão depressa! Amanhã, talvez, repararei no velhinho que se balança na varanda ao lado, olhando a rua, olhando a mim sem o saber, que também passo, tão veloz quanto um pensamento inútil que ignoramos, e não me perceberá. Não me perceberá o velhinho que madruga para me ver passar, todas as manhãs, da sua cadeira na varanda. Hoje o dia amanheceu Elis, umidamente Elis, constato, mas não me importo. Haverá outros ainda, e mais alguns. Depois... não sei! Apenas entendo que há o café que se prepara nestes lares em que nunca entrei, o beijo frio da despedida ao qual já se acostumara aquele casal que ainda vejo à soleira da porta, este sorriso destes olhos tristes que por hora dormem na poltrona ao meu lado e o velhinho... o velhinho na varanda e sua história de esperar todas as manhãs. Apenas isto, nesta manhã de Elis.
* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor, autor de Sob a Luz do Farol (2005) e De Espantalhos e Pedras Também se Faz Um Poema (2008). Escreve no blog http://viegasdacosta.blogspot.com . Permitida a reprodução desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra.
Quando criança, lembro-me, houve aquele dia de chuva que me concedeu o filme de Chaplin. Na televisão, a magia do vagabundo que adota aquele garoto. Sim, Chaplin é mágico, foi mágico para mim, e que mal há nesta magia? Quero reaprender a chorar. Por favor, quero reaprender a chorar, e me encantar com o vento no rosto e libertar meu peito no sol.
II - REMINISCÊNCIA
Meu avô tirando os dentes postiços e querendo me morder com suas gengivas nuas. Minha avó me obrigando a vestir aquele pulôver verde naquele dia de calor. O calor não estava no dia, mas no carinho da proteção; a nudez não estava nas gengivas, mas na inocência da infância.
III - O VIOLÃO
O violão se sustenta virgem e decorativo na parede nua, estrategicamente enquadrada pela câmera. Pende dos ganchos que o prendem à pedra, a possibilidade abortada do som. Em primeiro plano, a cantora, que fala demais. Por que tanta palavra e um violão mudo?
Não escutei as perguntas da repórter, tampouco as respostas da cantora que desconheço. Toda a minha atenção voltada àquele violão que ainda não nasceu.
IV - MANHÃ DE ELIS
Hoje o dia amanheceu Elis. As águas de março anunciando do verão o ocaso. E da janela em movimento, os pastos, as luzes sonolentas das casas que acordam. Na poltrona, encolho-me para escutar o apelo dos olhos tristes que sorriem em cumprimento ao meu lado. A quem pertencem estes olhos tristes? E a quem pertencem todos estes suspiros que enchem de vapores esta manhã tão úmida? Ah, viver esta vida anônima, acender todas as manhãs a lâmpada da cozinha e preparar o café! Este café que aquece aquela casinha acordada no final daquela rua, que passa tão depressa! Amanhã, talvez, repararei no velhinho que se balança na varanda ao lado, olhando a rua, olhando a mim sem o saber, que também passo, tão veloz quanto um pensamento inútil que ignoramos, e não me perceberá. Não me perceberá o velhinho que madruga para me ver passar, todas as manhãs, da sua cadeira na varanda. Hoje o dia amanheceu Elis, umidamente Elis, constato, mas não me importo. Haverá outros ainda, e mais alguns. Depois... não sei! Apenas entendo que há o café que se prepara nestes lares em que nunca entrei, o beijo frio da despedida ao qual já se acostumara aquele casal que ainda vejo à soleira da porta, este sorriso destes olhos tristes que por hora dormem na poltrona ao meu lado e o velhinho... o velhinho na varanda e sua história de esperar todas as manhãs. Apenas isto, nesta manhã de Elis.
* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor, autor de Sob a Luz do Farol (2005) e De Espantalhos e Pedras Também se Faz Um Poema (2008). Escreve no blog http://viegasdacosta.blogspot.com . Permitida a reprodução desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra.
Um comentário:
êê!
gracias por compartilhar estes lindos recortes...
bjs
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