sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

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UM BLOG DE ANGOLA:
* COM MUSIQUINHA
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onde pode-se encontrar, por exemplo, esta critica literária:
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Treze poetas de Angola

Ricardo Corona
*Seria exagero aferirmos à arte poética função didática ou compromisso directo com os actos humanos sem considerarmos que aquela permanece, espontânea e constantemente, em atenção a estes – como qualquer evento do homem – por sua natureza de pertencer ao núcleo utópico de ensinar, comover e deleitar. Uma adesão à palavra com consciência de que a poesia nos move porque pertence igualmente ao vivo e, portanto, seria menos uma função e mais um alento, que podemos identificar também nas línguas ou na genealogia de um sim. Para ajustarmos mais precisamente o foco, recorro a um texto que está no Operette Morali, de Leopardi: “Tenho pouco apreço por aquela poesia que depois de lida e meditada não deixa no espírito do leitor um sentimento nobre tal que, por meia hora, o impeça de admitir um pensamento vil e de cometer uma acção indigna.”Ovi-Sungo, treze poetas de Angola (Lumme Editor, 2007), antologia organizada por Claudio Daniel, um recorte com poemas escritos de 1970 a 2000 tem o mérito, o primeiro de uma lista de importâncias, de nos colocar a par, pelo radar poético, pelas “antenas da raça”, daquilo que podemos generalizar, com Agualusa, ser a acção sensível da “reconstrução permanente” de uma nação. Um atinar constante para o sentido das coisas vividas em colectividade, que são (ou deveriam ser) desde o amor até a moeda mínima que compra o pão de cada dia. Um sentimento que está arraigado na vida dos angolanos e que aparece em poemas desta selecção, como veremos nos versos de Jorge Arrimar, nos quais se lê: Eu sei que as paredes grossas / da casa onde nascemos / se começaram a construir / no tempo de outras gerações. / E ambos descobrimos isso / quando gatinhávamos / pelas primeiras letras / dos livros mais antigos / que lhe serviram de alicerces // Ainda os vemos de páginas abertas / no chão húmido da memória, / como se fossem janelas / das raízes que nos suportam. (As janelas das raízes, p. 141). Ou no embate das palavras acesas de Maria Alexandre Dáskalos: A alma é como a lavra. / Quando as nossas mãos voltam a desfiar. / O milho amarelo de ouro? (...) / Como se faz o mundo? Quando começa o mundo? (Sem título, p. 175). E a justa atribuição das palavras, em Abreu Paxe: entre as trevas e a seiva da sintaxe abundam palavras / inofensivas nada dizem à pátria por imitação os impérios / renovam os aspectos os tempos os modos (...) (Em sexo livre a língua, p. 47). A julgar pela selecção reunida no volume, são poetas que dizem sobre essa reconstrução de contexto. Os poemas, meio brinquedos que desmobilizam o real, sibilam e movem significados transformadores da realidade inanimada da Angola que mesmo após se livrar em 1975 da intransigência do colonialismo português vigente desde o século XVI até o XIX, transformou-se em palco da Guerra Fria –, com maoístas financiados por norte-americanos e comunistas apoiados por russos. São mosaicos sensíveis, contrastantes, diante dessa Angola das muitas jazidas de diamantes, dos muitos poços de petróleo; riquezas cobiçadas por europeus e norte-americanos, à custa de muita dor social, nunca permitindo que essas riquezas se transformassem em benefício para o angolano. Trata-se de uma poesia sendo feita em tempos declarados de não-poesia.Giuseppe Ungaretti, outro poeta “italiano” (na verdade de origem egípcia), refletiu exaustivamente sobre a poesia vinculada ao seu tempo, com aguda consciência dos estados de convulsões da história e perscrutado pela gênese da memória e da inocência, nunca abandonou a utopia mais alta: “A poesia reafirma sempre – é a sua missão – a integridade, a autonomia, a dignidade da pessoa humana. Se ela chegasse um dia a vencer sua batalha, se chegasse a salvar finalmente a alma humana, se um dia, na unidade das crenças, o primado do espírito fosse por todos admitidos como regra fundamental de toda sociedade, a poesia teria vencido sua batalha, e as dificuldades morais, que sempre dividiram tão tragicamente a humanidade, seriam finalmente resolvidas.” Talvez pudéssemos ver “O mundo recriado a partir dos olhos duma mulher”, seguindo os versos de João Tala (p. 137): Sou a palavra que você não disse / o nome que você não chamou. / Contigo viverei palavras desiguais / palavras ardidas na língua que as prolonga; / palavras perdidas e procuradas / onde tentas o sonho. Quem sabe fosse possível sentir a abundância nos milharais, entoada nos versos de Eduardo Bonavena: A chuva / Vai tornar a cair / Sobre / A minha aldeia / As bandeiras do milho / Voltarão a flutuar / Ao vento. / Teremos verde nos olhos / Os lábios molhados de leite. (...) (“Dos ventos da lona”, p. 113) Escapar do tempo, rasante, de céu embaixo e superfícies tagarelas que só fazem medrar o fim e o impasse: A morte da música pode ser lisa entre o início de um verão / e a direção que faz o silêncio. A surdez levanta a imagem / que a sombra distraidamente enterrara a cinco / palmos do chão. Para o coração se salvam as gaivotas / que levaram os mares para bem perto do sol que se despe (...) (Sem título, p. 58, de Adriano Botelho de Vasconcellos). Assim, a poesia será “aquele ofício perdido que toda geração deve reaprender, buscando na memória de um longínquo Éden.”: de sobras de esquecimento / e / de flocos de desassossego / se tece a rede da memória (...) (Sem título, p. 65, de Arlindo Barbeitos).Ovi-Sungo, que significa (conforme nota do livro) “palavra do umbundu, língua falada da província de Benguela até o planalto interior angolano que significa ‘cantos, cânticos’”, desdobrando para “‘ovi’ designativo plural de ‘sungo’, ou canção”, sugere a rica tradição oral angolana na qual a poesia tradicional aparece ligada ao canto, mas ligada de modo inseparável, esqueleto e carne. Em se tratando de etnopoesia, as culturas africanas apresentam seus poetas, desde sempre. O ouvido atento à poesia oral faz a diferença em poetas como Conceição Cristóvão, Cristóvão Neto e David Mestre, para ficarmos apenas com esses três. Conceição Cristóvão é o que mais nos oferece amostragens de etnopoesia: ...cavo a terra forjo o ferro faço o pão. / quando quero, sempre quero! / mesmo quando os makixi sangram pelo sexo. / e nos seios mirrados eivados / trazem o quente sabor da bílis. / dos dias sem chuva... (Antes da orgia, p. 82). Em nota explica-se que makixi (ou akixi, plural de mukixi, em kimbumdu) é uma figura mítica do meio rural, semelhante a um espantalho, e tem papel importantíssimo nos ritos de iniciação em muitas regiões do continente africano. O segundo, Cristóvão Neto, nesta seleção, traz referências a danças e instrumentos musicais originários da cultura popular angolana, como neste em que coloca o instrumento de percussão “kissanje” no centro de sua operação poética: Chove ainda, meu kissanje / Sobre a vidraça deste afogo / Como uma metafísica de insônias! // Sou qualquer lugar neste congresso de salmos! (Este kissanje que arroja salmos, p. 97). O terceiro, David Mestre, destacaria como exemplificação de uma poesia miscigenada de mitologias, feito este “Nagaieta de beiço”: Cantarei / as tuas coxas / entre (o pano) abertas o clamor / da // minha língua (em guarda). // O oiro / o mel / o silêncio cúmplice // a arca da tua boca / magra // Por que ardem as fontes / no auge / da alegria? // Eros (em chamas) ousasse / gota / a / gota / um rumor / de cal / aflita // Tu tem ngaieta de beiço / morro damor lá (p. 103). A antologia informa que “ngaieta” é uma corruptela luandense de gaita.Por mais que sejam operações próximas do conceito que António Risério classificou como “mitografismo”, ou seja, “semanticismo” um pouco ingênuo de transferência idiomática de conteúdos, devemos, no entanto, prestar atenção que tais operações partem da mesma cultura para “dentro” dela mesma. Do ponto de vista geopolítico, os sujeitos dessas confluências semânticas são poetas pertencentes a países periféricos, descentralizados, e, portanto, de fora do eixo europeu dominante. Esse deslocamento já apresenta novidade suficiente para circunscrever alguns momentos de invenção da poesia contemporânea mundial. São poetas que estão no mapa de um Jean-Joseph Rabearivelo (de Madagascar), que escreveu na língua do colonizador (no caso, o francês), mas que soube ouvir os cantos de sua cultura e produziu uma poesia extremamente original e dialogante com as ideias de “recuperação” da vanguarda mundial, assinaladas por Jerome Rothenberg, por exemplo.Os poemas que chamam para si uma elaboração na linguagem, salvo dizer que toda poesia deve trazer tal elaboração, o que não é diferente nesta antologia, mas, a dedo, podemos destacar a concreção da dicção de José Luís Mendonça, cuja materialidade aparece em seu vocabulário, sugerindo imagens instigantes e ousadas: Ó mãe dos gafanhotos / sentados na lavra da boca deserta: / quantos comboios pariu a tua fome / sobre tijolos gravados ao corte da língua? / O abecê do tempo sangra no pilão / e a chuva de Abril nos cafeeiros / é a mulher kilombo, dizem / morreu um leão no fogo do teu ventre / onde caminhei de animais na mão. (Um canto para Mussuemba, p. 154). Na mesma linha, Lopito Feijoó, cuja operação com equações quase matemáticas ocasiona o estranhamento necessário de toda poesia que se propõe pensar a própria linguagem, compartilhando interesses da vanguarda, especialmente os efeitos gráficos: 1 – Variável S: / Tanto tempo são todos os dias de manhã / a tarde e a noite no SUL quando chove. // 2 – Variável C: / São todos os tempos no CENTRO de todos / os dias e deste tema por (a)bordar... // 3 - Variável N: / (e porque) / são todos os tempos de colheita se a / ironia ancestral da vida troveja sobre / o sempre também NORTE da humanidade? (Sistema de equação tridimensional dum mistério a desvendar, p. 161). Na mesma ascendência experimental da antologia, certamente está a poesia de João Maimona. Nos limites de poesia e prosa, sem fazer uso de títulos, limítrofes de gêneros e outras demarcações de campos, seu fluxo textual ora devorante ora giratório, encarna a dicção neo-barroca em alta voltagem: o sentido do regresso e a alma do barco. / antes que o mar anuncie a sua existência / os capitães transfigurados trespassam a / linha do amor. as noites evasivas de / passageiros castigam as raparigas / de saias amarelas. assim se mostravam / as horas selváticas que destapavam / os enigmas da navegação crepuscular. / inicia-se uma peregrinação. os anjos / enviam mensagens para as raparigas / de olhos castanhos. / arrogantes eram os homens que / saudavam o barco. (sem título, p. 124).Ovi-Sungo traz ainda um glossário elucidativo das palavras de línguas originárias, dois bons ensaios complementares feitos por Carmem Lúcia Tindó Ribeiro Secco e Francisco Manuel Antunes Soares, que, somados aos poemas, colocam-nos a par da poesia de Angola, nação que está tão longe e tão perto.
(in Jornal de Angola)

* é poeta e tradutor. Autor dos livros de poesia Cinemaginário (1999), Tortografia, em parceria com Eliana Borges (2003), Corpo sutil (2005) – todos publicados pela Editora Iluminuras. Na área de poesia sonora, lançou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007). Organizou a antologia de poesia Outras praias / Other Shores (Iluminuras, 1997). Criou em parceria com a artista plástica Eliana Borges as revistas de poesia e arte Medusa (1998-2000) e Oroboro (2004-2006). Com Joca Wolff, traduziu o livro-poema aA Momento de simetria (Medusa, 2005) e a coletânea Máscara âmbar (Lumme, 2008), de Arturo Carrera. Em 2009, seus livros Cinemaginário e Corpo sutil serão lançados em Portugal, em um único volume intitulado Amphibia, pela editora Cosmorama.

Fonte: Bimbe: http://bimbe.blogs.sapo.pt/tag/cultura
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