Amálgama
por Viegas Fernandes da Costa
Um homem, e está só. A um canto da arena, na penumbra, este homem, em silêncio, posta-se de pé e segura nas mãos seus sapatos usados; sob suas solas, possível é, a memória das terras que já não mais estão.
O homem só move-se lentamente, escoando seu tempo num ritmo diferente ao da modernidade inaugurada com o aparecimento da locomotiva. Passo a passo, encontra o local exato para depositar seus sapatos, cercando assim seu território, suas referências: o par de sapatos, o casaco, as flores e a cadeira, sobre a qual repousa o vestido vermelho manchado de esperma. É no interior deste quadrado – sapatos, flores, cadeira e casaco – circundado pelo público, que se anuncia ao mundo surdo e cego o vazio de uma vida repleta de memórias impossíveis de troca. Uma cadeira ou um altar? Que cheiro trescalam flores antigas? Um casaco que aquece, ou paletó que representa? E esse vestido manchado de um esperma antigo, ainda cheira um cheiro passível aos sentidos, ou cheira apenas na lembrança? E o homem só move seu corpo nos limites da sua história, resumida à necessidade dos instintos que nunca se satisfazem e ao absurdo da existência. O que resta, enfim, é a repetição. É na repetição que este homem só se reconhece e se inscreve no mundo, estabelece sua identidade, ainda que intangível à racionalidade do público. Há momentos em que a comunicação procura se estabelecer, o homem só aproxima-se de um ou outro espectador, mas quando tal, não há mais um homem só, tal qual aquele que grita, que se masturba e se entrega ao gozo mecânico, que se contorce freneticamente, que liga o aparelho de som e se deixa mergulhado no ritmo de um mantra, que fala o ininteligível em fonemas que remotamente lembram o alemão e o italiano (culturas presentes na construção identitária do Vale do Itajaí, contexto geográfico no qual se construiu a experiência dramatúrgica de “Amálgama”). Quando o homem só se aproxima do público, quando olha em seus olhos, quando quase o toca, este homem só é tão somente representação; procura arrumar o cabelo, alinhar suas roupas, sorrir ou sofrer como quem sorri ou sofre para alguém, não para si. Logo a fraude se anuncia estéril, vazia, e o homem só retorna ao centro do seu imundo, onde goza, grita, geme, busca, morre e ressuscita. E quando esse homem só diz que acabou, porque necessita que acreditemos que acabou para que possamos abandoná-lo a si mesmo, não aceitamos sua sentença, e permanecemos, nós plateia, muda, surda e cega, na espera de um sentido, de um algo a mais que nos territorialize. Porque afinal, não nos movemos ao teatro para compreender o outro, movemo-nos ao teatro porque queremos nos encontrar. Mas não há sentido, não há um algo mais além da repetição. E temos então um homem, e está só. A um canto da arena, na penumbra, este homem, em silêncio, posta-se de pé e segura nas mãos seus sapatos usados; sob suas solas, possível é, a memória das terras que já não mais estão...
“Amálgama” estreou em 2008, e retornou aos palcos da Temporada Blumenauense de Teatro em 2010. Com direção de Silvio da Luz e texto de Gregory Haertel, podemos dizer aqui que o espetáculo constitui-se mais como uma performance do ator Adriano Amaral, e não tanto como monólogo. Em “Amálgama”, apesar do texto, o que menos importa são as palavras. É o trabalho de ator, seu domínio sobre o corpo e a forma como este expressa a angústia e os conflitos do personagem que importam. Não é o verbo, mas o movimento e a austeridade dos elementos de cena, que imprimem significado ao espetáculo, associados a uma pesquisa rigorosa na construção do roteiro e do próprio ator. O resultado é uma atuação impecável de Amaral e uma dramaturgia que nos remete a Samuel Beckett e seu universo de vazios e ausências de sentido.
Importante o retorno de “Amálgama” aos palcos, e a certeza da possibilidade de se radicalizar ainda mais a proposta do espetáculo. Se o personagem afirma, em dado momento “Acabou! Vão embora! Preciso que vocês vão embora para saber que acabou!”, talvez seria interessante deixar nas mãos do público a decisão de encerrar a peça. Desafio interessante para os limites físicos do ator e do público, amalgamado na ausência das palmas e no vazio.