quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Sobre bancos e poesia


Viegas Fernandes da Costa









Foto: Futurapress / Último Segundo
Desde quando plantaram aquele barco na praça, para ali apodrecer ante os olhos de toda gente, percebeu-se que o surreal tomara conta do dia-a-dia dos viventes da cidade e das páginas do jornal. O Vale deu lugar às valas, cerceara-se aos artistas o direito à livre palavra e houve até aquele poeta andarilho, cuja figura incrustara-se à paisagem urbana e os versos manchavam-se no suor de suas axilas, a exilar-se no sonho vendido em terras cariocas. “Triste de um povo que vê migrar para distante seus poetas”, cá pensei chutando pedregulhos. Abandonara-nos a poesia e restara-nos o tecer diário de uma mortalha costurada nos consultórios psiquiátricos. Enganara-me, entretanto. “A coisa não é assim tão definitiva” - percebi-o outro dia nas páginas mesmas do jornal diário: o poema parido do absurdo. “De costas para o Itajaí-Açu” – dizia a chamada na capa – , e a foto de um banco voltado para a estrada.

A possibilidade da poesia a que me refiro não está, entretanto, na inconcebível postura do poder público que há muito nos tenta convencer de uma identidade fabril e febril. Os bancos voltados para a estrada, cujo movimento e velocidade intensos nos martelam a urgência do mundo contemporâneo e seus negócios, e nos imputam culpa por estarmos ali, sentados, quando deveríamos estar esfalfando o melhor dos nossos anos produzindo para consumir, dizem desta cidade doente que um dia acreditávamos jardim. Assim, olhar para o rio configura-se antiproducente. Que discurso anuncia o rio? Este rio que é sempre mutante, este rio que nos diz do deslocamento, este rio que, líquido, não é concreto. Não por acaso, há quem defenda enjaular o rio, serpente sibilante que é.

A possibilidade da poesia a que me refiro está na capacidade de se ver e anunciar o absurdo. Não é pouca coisa reconhecer aos viventes o direito de contemplar o rio, o direito de sentar e compreender que a urgência do mundo contemporâneo e seus negócios não é maior que a urgência da própria vida. A poesia se anuncia no momento em que os significados da posição de um banco em via pública passam a ser tema de debate e ocupam as capas dos jornais. E um povo capaz de ouvir a poesia – e de olhar para o seu rio – é um povo que ainda respira, apesar de tudo!


* Íntegra do texto publicado no Jornal de Santa Catarina, 16/11/2011 por Viegas Fernandes da Costa



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